sábado, 1 de novembro de 2014

Banalidade do mal



"Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história". 
- Hannah Arendt



Em 1961, Hannah Arendt vai até Jerusalém como correspondente e informante do jornal The New Yorker para o julgamento de Otto Adolf Eichmann. Este havia fugido da Alemanha para a América do Sul através de um passaporte da Cruz Vermelha obtido com a ajuda do Vaticano. Eichmann obteve sua falsa identidade em Gênova, embarcando em seguida num navio italiano para Buenos Aires. Na década de 60 ele é capturado e transportado para Jerusalém onde se esperava que fosse ocorrer o mais famoso julgamento de um carrasco nazista desde Nuremberg.

A primeira percepção de Hannah Arendt sobre Eichmann "o homem na 'jaula' de vidro", foi de que ele parecia ser um homem comum, evidenciado em sua superficialidade transparente e mediocridade, o que a deixou atônita na medição dos atos cometidos por ele. Sua função era organizar a deportação dos judeus nos trens e a partir do momento em que os trens partiam, sua função estava cumprida. Arendt alega que por isso ele não sentia responsabilidade ou culpa. Na verdade, confrontado, ele afirmou que não mantinha nenhum ódio especial aos judeus, nem chegou a ter contato direto com eles, apenas seguia ordens. "Foram as ordens que eu recebi. Só fiz obedecer". Eichmann, nas orientações, fixava o número de pessoas para cada vagão. Ele incessamente repetia que "Só recebia ordens. Se elas (as pessoas judias) seriam mortas ou não, as ordens tinham que ser executadas". Ainda quando confrontado sobre a exterminação dos judeus, ele dizia que não os havia exterminado.


Diante disso, Hannah Arendt chegou a conclusão de que Eichmann não odiava os judeus nem era anti-semita, ele apenas só fez obedecer a lei. Teria obedecido a qualquer lei. Ela aponta que o mal, como aprendemos, é algo demoníaco, uma encarnação de satã. Mesmo com toda a boa vontade do mundo, não se percebe em Eichmann nenhuma índole diabólica ou demoníaca. Ele era incapaz de pensar. Seis psiquiatras atestaram que Eichmann era um homem "normal". Seu comportamento com a família e amigos não era somente boa, como "desejável"; era organizado, regular e eficiente. Um assasino de massa e ao mesmo tempo um homem perfeito de família. Eichmann não era um monstro, um demônio, embora as suas ações fossem monstruosas. A sua única característica peculiar, durante o julgamento, não era estupidez, mas uma "curiosa e autêntica incapacidade de pensar". Superficialidade. "Não havia nele nenhuma grandeza satânica, mas simplesmente uma horrorosa e burguesa banalidade". Eichmann sempre agiu de acordo com os limites permitidos pelas leis e ordenanças. Essa atitude resultou na turvação entre virtudes e os vícios de uma obediência cega. Na verdade, não foi só Eichmann, como uma pessoa isolada, que era normal, enquanto todos os outros burocratas eram monstros sádicos. Um era antes uma massa compacta burocrática de homens que eram perfeitamente normais, mas cujos atos eram monstruosos. Atrás de tal normalidade terrível da massa burocrática, que foi capaz de cometer as maiores atrocidades que o mundo tem visto, Arendt abordou a questão da banalidade do mal.  

Algo importante sobre Eichmann é saber suas origens. Ele não foi um homem rico a vida toda. Nunca foi uma celebridade reconhecida e popular. Quando jovem, estava inserido na classe baixa média, mas era ambicioso e farto de sua vida de vendedor ambulante. Por oferecimento de um amigo de seu pai, conseguiu entrar na SS. Então, só podemos juntar os fatos. Alguém pobre, sem expectativa e com vontade de se mostrar, encontra em Hitler (assim como os próprios alemães o viram) um chefe carismático e como alguém em quem se espelhar. Ora, Hitler passou de cabo de esquadra do exército alemão a führer. Nas próprias palavras de Eichmann "... somente esse sucesso já provava que eu deveria me submeter a ele".

Hannah Arendt também percebeu em Eichmann uma linguagem administrativa e uma incapacidade de pronunciar qualquer frase que não fosse um clichê, um bordão. Usava chavões e não parecia perceber a inconsistência do que dizia. Essa característica é um ponto a favor do totalitarismo, pois essa linguagem ajuda a criar e manter um afastamento da realidade. Três palavras para descrever Eichmann são: inconsciência, afastamento da realidade e obediência. "A incapacidade de pensar, potencializada pelo afastamento da realidade, gerava a inconsciência". Ele nunca compreendeu o que estava fazendo. E é isso importantíssimo para as conclusões de Arendt. Eichmann exercia uma "obediência de cadáver", o que era esperado e considerado virtude dos soldados alemães. Eles eram praticamente mortos-vivos. Repetiam e reproduziam os ideiais do Partido, não pensavam ou questionavam, só obedeciam a ordens. Segundo Arendt, "havia muitos iguais a ele e que a maioria não era nem perversa nem sádica, era e ainda é terrível e aterradoramente normal". 

Controverso é o depoimento de Eichmann de que ele teria vivido toda a sua vida baseado nos preceitos morais de Kant, no dever e imperativo categórico. Porém, a partir do momento em que ele parou de pensar parou também de ser "senhor dos seus atos". No lugar de "Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal", ele estava mais inclinado a "Age de tal maneira que se o führer soubesse da sua ação, aprovaria" (Hans Frank). A fonte de onde surgia a lei, para Eichmann, era a vontade de Hitler. 


Outra questão polêmica debatida no livro de Arendt é sobre a cooperação, passividade e falta de resistência dos conselheiros judeus. Sua crítica a eles trata-se de suas atitudes antes do regime nazista disseminar o completo terror; numa primeira etapa onde a resistência poderia ter sido significativa para o destino judeu. O que é importante frisar aqui – e que é ponto de erro comum entre aqueles da época de Hannah Arendt como ainda é hoje por alguns leitores – é que Arendt, em momento algum, cobrou uma resistência à cooperação quando isto era impossível (depois que os judeus já estavam sendo transportados para os campos de concentração, por exemplo), pois ela sabia o que era possível em cada etapa e é exatamente numa primeira etapa, que ela fomenta sua crítica. Dentro disso, ela aponta Leo Baeck, rabino de Berlim em 1932, chamando-o de “führer judeu”, alegando que ele teria negociado com a Gestapo, constituindo uma polícia judia que seria encarregada de deportar os judeus (dizia que os policiais judeus tratariam melhor a sua raça, coisa que na verdade não aconteceu).

"Onde quer que os judeus morassem havia sempre líderes judeus reconhecidos. E esses líderes, quase sem exceção, cooperavam, de uma maneira ou de outra e por diversas razões, com os nazistas. A verdade é que, se o povo judeu realmente estivesse desorganizado e sem qualquer liderança, teria havido caos e muita miséria, mas o número de vítimas não teria se situado ente 4,5 e 6 milhões".

O tribunal que julgava Eichmann via-se diante de um crime que inexistia nos códigos penais. E o réu era diferente de todos aqueles que antecederam o julgamento de Nuremberg. Mesmo assim, cabia ao tribunal definir Eichmann como homem sendo julgado por seus atos. Não se julgava um sistema, nem a história, nenhum "ismo". Somente a pessoa 'Eichmann'. O problema com um criminoso nazista como Eichmann, é que ele insistia em renunciar qualquer traço pessoal, como se não tivesse sobrado ninguém para ser punido ou perdoado. Repetidas vezes ele protestava, rebatendo as acusações da promotoria, dizendo que não tinha feito nada por iniciativa própria. Que jamais fizera algo premeditadamente, para o bem ou para o mal. Apenas cumprira ordens. Esta desculpa típica dos nazistas torna claro que o maior mal do mundo é o mal perpetrado por ninguém. Males cometidos por homens sem qualquer motivo, sem convicção, sem razão maligna ou intenções demoníacas. Mas seres humanos que se recusam ser pessoas. É a esse fenômeno que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal. Procurando alguma profundidade em Eichmann que poderia explicar as raízes do mal, Arendt encontrou uma ausência de maus motivos, como se o mal fosse um fenômeno superficial em oposição à faculdade de pensar. Uma vez que "...o pensamento, por definição, quer chegar às raízes," a banalidade do mal, esse mal sem raízes, pode ser entendido essencialmente pelo movimento resultante de negligência. Eichmann, pelo fato de que ele não era capaz de exercer a faculdade de pensar, não foi possível encontrar qualquer profundidade em relação aos seus atos. Tais aspectos são mencionados por Arendt em uma das declarações mais polêmicas em sua correspondência com Gershom Scholem. Arendt enfatiza que o mal poderia se espalhar "como um fungo na superfície", principalmente porque não há nenhuma profundidade, e que apenas a atividade de parar e começar a pensar, pode atingir a profundidade. Arendt enfatiza: "Na verdade, é minha opinião, agora que o mal nunca é 'radical', que só é extrema, e que não possui nem profundidade, nem qualquer dimensão demoníaca. Ele pode crescer demais e devastar o mundo inteiro justamente porque se espalha como fungos na superfície. Ele é 'desafio de pensamento’ porque há tentativas de pensamento para chegar a alguma profundidade, para ir às raízes, e no momento em que se preocupa com o mal, é frustrado porque não há nada. Essa é sua ‘banalidade’. Somente o bem tem profundidade e pode ser radical”.

Sócrates e Platão geralmente se referiam ao pensar como o diálogo silencioso travado consigo mesmo. Ao recusar-se a ser uma pessoa, Eichmann abdicou totalmente da característica que mais define o homem como tal: a de ser capaz de pensar. Consequentemente, ele se tornou incapaz de fazer juízos morais. Essa incapacidade de pensar permitiu que muitos homens comuns cometessem atos cruéis numa escala monumental jamais vista. O mal não pode ser simultaneamente banal e radical. O mal é sempre extremo, nunca radical. O bem é sempre profundo e radical.

Pronto. Hannah Arendt havia abalado com todas essas teorias e conclusões toda a comunidade de sua época. Ela viria a ser extremamente conhecida e famosa, mas não se pode dizer que de uma boa maneira. Como era de se esperar, "choveram" críticas, difamações e ameaças à jornalista e filósofa que ousara tremer as bases de uma ordem de pensamento estabelecida. Ela foi acusada – por praticamente toda a comunidade judaica (tanto em Israel quanto nos EUA), pela imprensa e até por aqueles que nem ao menos tinham "status" para questionar algo – de lançar ideias difamatórias sobre o povo judeu e apontar "uma participação judia no holocausto nazista".

"Essa é Hannah Arendt, só inteligência, sentimento nenhum". Críticas como essa se espalharam rapidamente. Gideon Hausner, procurador israelense no processo Eichmann, rebate e responde a "bizarra defesa de Eichmann que Arendt havia feito". Ele aponta Arendt como acusadora dos judeus europeus por estes não terem se defendido e oferecessem resistência, deixando-se serem massacrados. Já Gershom Scholem, que tanto havia elogiado "Origens do totalitarismo" mais cedo, censurou "Eichmann em Jerusalém" dizendo que o que reprovava no livro era a insensibilidade de Hannah Arendt e "sua falta de herzentark (tato de coração)". Ele a acusa de não ter ahabat Israel, amor ao povo judeu. Em resposta, ela diz que "o mal feito pelo meu próprio povo me afeta evidentemente mais que o mal feito por outros povos".