quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Música, poesia e ditadura

De 1964 a 1985 o Brasil foi governado pelos militares, sendo caracterizado como um período sem democracia, perseguição política, repressão e uma forte censura a tudo e todos que fossem contrários ao regime imposto. Era o inferno na terra. A música, como manifestação artístico-cultural de forte teor social e político, foi extremamente censurada. Qualquer tipo de incitação a sedição e revolta da população era barrada de forma impetuosa. Porém para nossos cantores, compositores e escritores nacionais, isso não era motivo para abaixar a cabeça. Alguns foram ousados, irônicos e denunciavam sem piedade o regime, sendo ainda hoje, lembrados com grande admiração e veneração.


Nascido em João Pessoa, em 1951, Alex Polari foi um entre vários que sofreu os males da cruel e brutal ditadura no Brasil. Preso e condenado a 80 anos, Polari escreveu "Inventário de Cicatrizes", com poesias feitas enquanto esteve no cárcere, publicando-o em 1978. Após a anistia, em 1980 foi libertado, tendo nessa época 29 anos. Um de seus poemas mais conhecidos foi dedicado a Stuart Angel, que sofreu as maiores atrocidades possíveis dos militares. Seus poemas são tristes e revoltantes, suas memórias sangram em forma de versos. Sua leitura pode ser um pouco desagradável, dolorosa, mas é essa a intenção. O incrível da poesia não é ser bonita, é ser tocante.

Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)

Eles costuraram tua boca
com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gases,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.
Um vento gelado soprava lá fora
e os gemidos tinham a cadência
dos passos dos sentinelas no pátio.
Nele, os sentimentos não tinham eco
nele, as baionetas eram de aço
nele, os sentimentos e as baionetas
se calaram.
Um sentido totalmente diferente de existir
se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.
Eles queimaram nossa carne com os fios
e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.
Então houve o percurso sem volta
houve a chuva que não molhou
a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.
Entregue a perplexidades como estas,
meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.


Inúmeros foram os artistas que lutaram através de músicas. Alguns não fizeram críticas diretas à ditadura, mas em suas obras retratavam um forte teor social e político. Uma das mais conhecidas entre os brasileiros é a "Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores", também conhecida como "Caminhando", escrita por Geraldo Vandré em 1968. Essa canção tornou-se um hino de resistência do movimento estudantil que mostrava oposição à ditadura militar. Com rimas fáceis, tranquilamente as pessoas a decoravam para cantá-la nas ruas. Obviamente foi censurada, principalmente pelos militares que viam em alguns de seus versos uma ofensa.


Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
(...)
Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão


Depois de Vandré, Chico Buarque tornou-se o cantor mais odiado pela ditadura, tendo várias de suas músicas censuradas, o que de nenhum modo impediu o cantor de continuar a compor e cantar. "Apesar de você" foi lançada em 1970 e para enganar a censura, Buarque alegou que a música se tratava de uma briga de casal na qual a esposa era muito autoritária. Algum tempo depois os militares descobriram a real intenção da música e logo ela foi censurada e proibida nas rádios. A canção fazia referência ao então general e presidente do Brasil, Emílio Garrastazu Médici. Em seus versos havia primeiro a resignação, depois, a vontade de mudanças, as ameaças e o desprezo não mais contido. No final há uma “união de vozes” demonstrando a união do povo, que juntos acreditam em um "novo dia", um "novo futuro".

Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
(...)
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
(...)
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
(...)
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia


Outra música de Chico Buarque que todos já ouviram, mas poucos conhecem o seu significado é "Jorge Maravilha", lançada sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide em 1974. Nela, o eu lírico diz aos pais de sua namorada: "Você não gosta de mim/mas sua filha gosta". Aparentemente, uma relação conflituosa entre filha/sogro/genro, porém mais tarde as suspeitas se confirmariam: a canção fazia alusão ao então general e presidente Ernesto Geisel, cuja filha Amália havia declarado ser grande fã da obra de Buarque. Antes disso, em 1973, Buarque, juntamente com Caetano Veloso compôs a música "Cálice". O verso "Pai, afasta de mim este cálice" trata-se de uma passagem retirada do Novo Testamento. Porém, quando pronunciada, a palavra "cálice" é idêntica ao imperativo "cale-se". A música brinca com esse duplo significado através de inúmeras repetições, denunciando assim a censura exercida pelo governo.

Também em 1973, Raul Seixas lançou "Mosca na sopa", que através de uma metáfora, a ditadura militar é a sopa e o povo a mosca. O povo então é apresentado como aquele que incomoda, perturba, não pode ser eliminado e se levanta contra regimes que os oprimem.


Eu sou a mosca
Que posou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar
E não adianta
Vir me dedetizar
Pois nem o DDT
Pode assim me exterminar
Porque você mata uma
E vem outra em meu lugar


Esses são alguns entre os tantos artistas que não deixaram que suas vozes fossem caladas pela opressão ditatorial. As armas podiam reprimir os movimentos populares, amarrar pernas e braços, torturar com choque elétrico, espancar, prender, mas calar as ideias e mentes desses homens e mulheres, nunca. Hoje porém, vemos que grande quantidade da música produzida e disponibilizada no Brasil é para consumo de massa, algumas inclusive não têm nada implícito por trás de suas letras. Na verdade, elas somente reproduzem um estilo de vida firmado pelo sistema capitalista. Olhando para trás e analisando toda essa grande gama de preciosidades oriundas da mpb, ficamos até tentados à nostalgia. A música que antes era um instrumento de luta hoje fomenta o sistema e aliena os ouvintes. 
Mais uma vez, obrigada Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Raul Seixas, Milton Nascimento, Zé Ramalho, Gilberto Gil, e outros diversos. Vocês representam o motivo do orgulho de ser brasileiro.

- Extra:
 
AFOGAMENTO (Paulo Fonteles)

       CORPO ESTIRADO
CABEÇA REPUXADA PARA TRÁS.

      TUBOS DE BORRACHA
INFILTRAM-LHE NA BOCA
                                      NAS NARINAS.


      ÁGUA.


O PEITO SUFOCA
O CORPO ESTERTORA
O PRESO ESPERNEIA.


       AGONIA.


QUANDO A MORTE SE APROXIMA
APENAS UM FÔLEGO.

        APENAS UM FÔLEGO
QUE O PRESO NÃO PODE MORRER ANTES DE
FALAR.


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